quarta-feira, 3 de novembro de 2010

decisão

Gustavo estava na fila do supermercado, esperando sua vez. Segurava uma caixa de hambúrgueres congelados, um pacote de pão e um pack de cervejas importadas. Era mais de meia-noite e ele podia muito bem pedir um sanduíche por telefone, mas as paredes daquele apartamento sufocavam-no. Precisava de ar fresco. É. Brisa da noite. É. Por isso foi andando.

De tempos em tempos, o número do painel eletrônico mudava indicando o caixa livre. Fazia um sonzinho irritante, mas não importava muito. Gustavo segurava forte uma das cervejas e fitava o nada sem piscar. Sentia suas pupilas dilatando e perdendo o foco, mas não queria piscar ainda, estava ocupado, estava pensando. Piscou. Era sua vez. O toque suave do senhor atrás dele o arrancou dos seus devaneios: "Rapaz! Sua vez!". Ah.

Pagou, mas não conseguia parar de pensar. Compro ou não compro? E foi ao banheiro porque lá dava pra viajar um pouco sem ser notado, daí podia tomar a decisão. Só queria dormir pesadamente, não precisava de muitos comprimidos. Compro ou não compro? Descansou a garrafa na pia, mas quando foi lavar as mãos, obviamente, derrubou-a. O brilho dos cacos de vidro era como ímã. Não piscou, só pegou um pedaço pontiagudo e perigoso e correu pra uma das cabines.

Sentou no vaso com a tampa fechada, fitando o objeto sedutor. Lexotan ou Rivotril? Teve vontade de cortar a palma da mão esquerda, como fizera acidentalmente quando criança. Lexotan? Ia cortar só um pouquinho, só uma dorzinha, nem queria sangue. Rivotril. É. Encostou a parte mais delicada do fragmento e nem doeu. Quase nem sangrou! Olhou pro pé e o cadarço estava desamarrado. Merda!

No mesmo segundo, desesperada, entra naquele ambiente com luz branca demais, uma menina chorante e ofegante. Ela deu um suspiro contido e nem sei se percebeu a portinha fechada. Sua angústia contrastava com a tristeza vazia do rapaz. Ele jogou o caco no lixo e enxugou as mãos na bermuda. Ouvia ela aspirar profundamente e coçar o nariz fungando alto. Levantou bem rápido, piscou várias vezes, sacudiu a cabeça, amarrou os sapatos e foi pra casa comer.

2 comentários:

Maya disse...

" (...) fitava o nada sem piscar. Sentia suas pupilas dilatando e perdendo o foco, mas não queria piscar ainda, estava ocupado, estava pensando." Engraçado como nunca tinha visto uma descrição tão legal pra esses momentos tão vazios que rolam com a gente! Very good, parabéns pelo texto! :D

V. Allan disse...

Atônito.

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